“Mas antes de se encontrarem, Aurélia telefonou para Serjoca:
precisava de maquilagem urgente. Ele foi à sua casa.
Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me
tirando o rosto.
A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia,
uma cara só de carne. Carne morena.
Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar
ao espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha
anulado o seu rosto. Mesmo os ossos — e tinha uma ossatura
espetacular — mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está
me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do
Affonso.
Voltou sem graça. No restaurante quase não falou. Affonso
falava mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava
interessado no rapaz.
Enfim, enfim acabou o almoço.
Serjoca marcou encontro com Affonso para de noite. Aurélia
disse que não podia ir, estava cansada. Era mentira: não ia
porque não tinha cara para mostrar.
Chegou em casa, tomou um longo banho de imersão com
espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo
também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua
individualidade?
Saiu da banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha
enorme, vermelha. Sempre pensativa. Pesou-se na balança:
estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira também o peso,
pensou.
Foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era
mais nada.
— Então — então de súbito deu uma bruta bofetada no lado
esquerdo do rosto. Para se acordar. Ficou parada olhando-se.
E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para
encontrar-se.
E realmente aconteceu.
No espelho viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela
era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to”.
precisava de maquilagem urgente. Ele foi à sua casa.
Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me
tirando o rosto.
A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia,
uma cara só de carne. Carne morena.
Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar
ao espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha
anulado o seu rosto. Mesmo os ossos — e tinha uma ossatura
espetacular — mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está
me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do
Affonso.
Voltou sem graça. No restaurante quase não falou. Affonso
falava mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava
interessado no rapaz.
Enfim, enfim acabou o almoço.
Serjoca marcou encontro com Affonso para de noite. Aurélia
disse que não podia ir, estava cansada. Era mentira: não ia
porque não tinha cara para mostrar.
Chegou em casa, tomou um longo banho de imersão com
espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo
também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua
individualidade?
Saiu da banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha
enorme, vermelha. Sempre pensativa. Pesou-se na balança:
estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira também o peso,
pensou.
Foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era
mais nada.
— Então — então de súbito deu uma bruta bofetada no lado
esquerdo do rosto. Para se acordar. Ficou parada olhando-se.
E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para
encontrar-se.
E realmente aconteceu.
No espelho viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela
era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to”.
Clarice Lispector – Trecho do conto "Ele me bebeu" - A Via Crucis do Corpo
Um comentário:
Clarice é fantástica... Genial..
Apocalíptica mesmo...
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